Os primeiros da fila do trabalho, os últimos na fila da comida
Leonardo Melgarejo – ambientalista e colaborador da Rede Democracia – G68
Há alguns anos recebi alta em grupo de terapia orientado por psicóloga adepta da Análise Transacional. Basicamente, ela me fez ver que eu repetia processos comportamentais em relações sociais que se assemelhavam a jogos infantis. Oscilando de forma inconsciente entre as posições de vítima, salvador ou perseguidor, eu marchava de relacionamento a relacionamento, num padrão repetitivo em termos de conteúdo, independente da época, do ambiente ou das situações. Triangulações, onde eu acabava me anulando para cumprir as regras de enredos pré-existentes, onde os papéis acabavam me nublando a consciência, impedindo a autocrítica, orientando ações e alimentando um sentimento de irresponsabilidade efetiva, em troca de compensações emocionais literalmente vergonhosas. Em poucas palavras: alienação autoestimulada. No mais simples dos casos, ali estava a satisfação de me pensar “ajudando” alguém, enquanto na verdade só contribuía para ampliar a inconsciência e a dependência de outras pessoas envolvidas no mesmo jogo. Como na piada do masoquista que dizia “me bate” para um sádico que respondia “bato não”, pode parecer que a simples consciência de estar metido em um jogo de estrutura repetitiva, deveria bastar para desmontar o drama. Mas não é assim. Pelo menos não foi assim comigo. Sem o apoio, sem as perguntas orientadoras, sem o acompanhamento de uma leitura externa, responsável e independente, eu não estaria aqui, agora, me atrevendo a escrever este texto.
O fato é que ajudado a enxergar relação entre os vícios que oferecem facilidades ilusórias e os erros que impedem o crescimento, aprendi muito. Ganhei em autonomia. De cara, aprendi que precisamos reconhecer quando precisamos de ajuda, e aceitar ajuda, para que ela tenha serventia quando se fizer disponível. Também aprendi que depois daquele primeiro momento, no qual todo empurrãozinho faz enorme diferença, quando já se sabe que não é possível avançar sozinho, fica mais fácil escolher com quem queremos seguir adiante, e em que rumo.
Por isso, mesmo ciente de que a simplificação daquele primeiro parágrafo não dá conta da complexidade das relações que vivenciamos, a imagem me serve para afirmar que muitas vezes precisamos de um olhar “de fora”, para nos percebermos enredados em armadilhas e nos desvencilhar de papéis e roteiros que nos apequenam.
Com orientação adequada, aquela “visão externa” pode inclusive vir de nós mesmos. Ou de algum texto, de alguma palavra ou, principalmente, de atitudes que identificamos como corretas e que nos cobram respeito, atenção e emulação. No fundo, o importante é o método. E ele passa pela autocrítica, que exige maturidade para aceitação de críticas e que envolve atenção a perguntas honestas (venham de onde vierem, em palavras, olhares ou gestos) daquele tipo que as crianças costumam fazer (O que? Por que?), gradativamente complementadas por temas de gente adulta, de gente comprometida/preocupada com o que faz, ou deixa de fazer, e com o “para onde” isso nos conduz, a todos.
E convenhamos, basta olhar em volta para enxergar que o descaso coletivo a este tipo de indagações está acabando com o paraíso na terra. Resulta disso que somos milhões trabalhando de orelha murcha e rabo entre as pernas, para sustentar os excessos de poucos, que em desperdícios irresponsáveis, estão destruindo as bases do metabolismo vital de Gaia, nossa casa comum. Repetindo: milhões sofrendo calados, de diferentes formas e sob amplas precariedades, para manutenção do prazer e delícias de alguns, até que chegue o fim de tudo, para todos. Por quê?
Ao buscar respostas percebemos que aqueles beneficiados pela generalização da miséria estão sendo protegidos por justificativas enganosas, que aceitamos porque nelas fomos treinados a acreditar. Cumprindo roteiros, deixamos de ver que estamos enredados por artimanhas que obscurecem nossa leitura de realidade, que envolvem a captura da democracia por interesses “do mercado” e que articulam bandos de criminosos que tanto nos seduzem com agrados como nos ameaçam com o uso impune da violência e outras simbologias paralisantes.
Mas sendo isso óbvio, aqui me interessa mais comentar o fato que tudo isso tem a ver com aceitarmos a imposição de papeis/categorias que se ajustam àquelas justificativas e que aí estão para garantir proteção aos interesses que nos abafam. Estamos evitando perceber que elas, as categorizações, operam na forma de enunciados que apontam como “defeitos” as diferenças que nos fazem únicos, retirando dali argumentos que nos ‘‘desqualificam” e com isso fortalecendo a manutenção de uma realidade que nos oprime.
Me refiro a enunciados que nos diminuem, que nos separam, que nos dividem em grupos de seres desvalorizados em permanente luta fratricida, por migalhas de um reconhecimento que já perdemos de vista: esquecemos que na luta de classes, sendo trabalhadores, somos iguais.
Afinal, estamos juntos no barco da história porque somos aqueles com pouca voz, com pouca grana, com pouca vez. Aceitando os rótulos que nos separam pela cor da pele, pelo gênero, pela opção sexual, pelo peso, pela altura, pelas crenças, pelo acesso a sapatos e bolsas, pelo que podemos comprar para comer ou pelos espaços que frequentamos, validamos as hierarquias que nos desmontam como classe e que assim nos mantém alijados de tudo que podemos ser.
Desta forma, até mesmo causas identitárias e outras formas de reconhecimento efetivamente importantes se erguem como muros que nos dividem e que impedem o enfrentamento da verdade original: somos todas vítimas de um sistema que nos separa em castas para inviabilizar alianças que permitam mudar a correlação de forças que nos esfarela, aos milhões, geração pós geração.
E é com esta visão que passo a recomendar um texto que, pessoalmente, está me servindo tão bem, para abrir os olhos e a mente, quanto aqueles esclarecimentos de que tratei no primeiro parágrafo deste texto.
Na Conferência Dilemas da Humanidade (África do Sul 14 a 18 de outubro de 2023), João Pedro Stédile, destaca no artigo Os Desafios das Forças Populares a necessidade de revigoramos trabalhos de base aplicados à emancipação da classe trabalhadora. Isso porque, se não o fizermos, qualquer solução eleitoral resultará enganosa, entronando governantes incapazes de realizar mudanças significativas naquilo que mais interessa. Para tanto, além de mudanças de atitude individual e de formas de organização social, se fará necessário articular ações de massa com elementos de arte e cultura que operem ao nível das motivações espirituais e afetivas. Para que isso tenha sucesso, se faz indispensável o envolvimento unificado de mulheres e dos jovens, o que exige abertura de espaços para aqueles/as que carregam a ousadia destes tempos. Converge com isso a necessidade de socialização de conhecimentos com foco na luta ideológica, tendo em conta que é na solidariedade que se alimenta a principal força histórica dos povos. Neste sentido, elementos de formação devem incluir debates sobre a questão da Palestina, da crise ambiental, de todas as formas de discriminação e racismo, da defesa dos bens coletivos e outras tantas necessidades urgentes e aglutinadoras, como elementos fundantes da grande causa comum: a luta contra o sistema que se perpetua com nossa alienação e acomodação naqueles papéis onde nos encolhemos, cooptados, usufruindo do que nos parecer ser o que de melhor que poderemos ter numa vida sem futuro.
Ao concluir, Stedile referiu a importância dos pequenos gestos e a força pedagógica contida no exemplo daqueles e aquelas que se colocam como primeiros na fila do trabalho e últimos na fila da comida. De fato, na luta de classes que conduz as relações humanas, alguns despertam mais cedo para os compromissos que definem quem somos e quão comprometidos poderemos vir a ser, para ajudar na construção de coisas efetivamente grandes, capazes de contribuir para ampliação dos caminhos que levam à emancipação humana.