Os evangélicos e a luta de classes
Bruno Reikdal Lima – Formado em teologia, graduado e mestre em filosofia, e doutor em economia política mundial. Pai, pesquisador, professor e consultor pedagógico atualmente ligado ao Departamento Ecumênico de Investigações (Costa Rica). Editor da Revista Zelota, é evangélico, comunista e filiado à Unidade Popular pelo Socialismo. Autor de livros como “Fetichização do poder como fundamento da corrupção” (Editora Fi, 2018) e “Fascismo como Religião” (Pajeú, 2022).
Introdução
Uma das primeiras dificuldades que temos ao analisarmos o movimento evangélico como um fenômeno social é entender “quem fala a respeito dele” e “quem fala em nome dele”. Isso é particularmente importante porque para boa parte da população envolvida diretamente no debate público e nas tomadas de decisão sobre os rumos políticos de nosso país os evangélicos ainda são uma grande surpresa, uma novidade complicada e quase incompreensível. Entre os grupos e partidos políticos “à esquerda” essa relação se torna mais evidente.
Contudo, o fundamento desse quadro de incompreensões reside em questões ideológicas e/ou de valores, mas é fruto do desenvolvimento da modernização capitalista brasileira do último século e a composição de classes de nossa sociedade. Nesse sentido, ao observarmos “quem fala a respeito dos evangélicos” e “quem fala em nome dos evangélicos”, podemos remontar o processo histórico, político e econômico que nos conduziu até nossa atual conjuntura, na qual esse movimento religioso joga um papel cada vez mais determinante no cenário político do país, sendo composto por mais de um terço da população e com tendência a se tornar a religião hegemônica em nossa sociedade.
Em nosso texto, portanto, primeiramente discutiremos um pouco sobre o momento em que os evangélicos passaram a ganhar importância na política brasileira (sustentando que o ponto de virada foram as eleições de 2010) e quem passou a falar sobre o movimento como fenômeno social relevante. Em seguida, discutiremos “quem fala pelos evangélicos” e o modo como essa religião se adaptou ao processo de modernização capitalista, especialmente nas periferias das cidades brasileiras. Por fim, faremos um pequeno balanço sobre as relações de classe no interior desse movimento, indicando como são determinantes para compreendermos sua força e suas fraquezas.
Quem fala sobre os evangélicos?
Nos anos de 1990, Flávio Pierucci era um dos raros acadêmicos que considerou importante observar a eleição de evangélicos para a constituinte de 1985 com o processo de redemocratização[1]. A formação da primeira “bancada evangélica” com poucos participantes foi indicada pelo autor como um potencial surgimento de uma “nova direita cristã”, tendo como referência o que ocorreu nos Estados Unidos anos antes.
Foram poucas as autoras e autores que tocaram na temática até a primeira década dos anos 2000, quando especialmente a partir do ano de 2010 o movimento evangélico ganhou manchetes e manchetes nos veículos tradicionais de mídia e em pesquisas universitárias durante e após a candidatura de Marina Silva à presidência pelo Partido Verde (PV). Uma organização pequena, sem grande capilaridade, mas que quase alçou a candidata para o segundo turno, tomando votos tradicionalmente depositados no partido socialdemocrata de direita, Partido da Social-Democracia Brasileira (PSDB), para fazer frente às candidaturas do Partido dos Trabalhadores (PT).
No final do primeiro turno, o crescente apoio popular a Marina Silva pôs em risco as possibilidades de José Serra, então candidato pelo PSDB, de seguir para o segundo turno – o que chamou a atenção da classe média tradicional e dos partidos de direita do país. Qual fator explicava esse fenômeno de ascensão de uma candidata de um pequeno partido no cenário nacional? Pela primeira vez o corte religioso apresentou sua força e, mais, com uma base forte entre pessoas que tradicionalmente apoiavam (e apoiam) candidaturas de esquerda nos votos para o executivo.
A mídia tradicional (ligada aos candidatos da socialdemocracia e normalmente em defesa dos programas de seus partidos) passou a focar o papel dos evangélicos nas eleições e buscou traçar seu perfil. Ao mesmo tempo, os partidos de direita se interessaram pela possibilidade de alavancar sua capilaridade entre as classes populares com aproximações programáticas e acadêmicos se interessaram cada vez mais pelo fenômeno. Todo esse movimento tem em seu ponto de partida uma questão de classes fundamental: os dirigentes de partidos, os donos e editores de grandes jornais e veículos de mídia, assim como a classe universitária tradicional são de majoritariamente pessoas brancas, homens, de classe média ou mesmo da elite, de formação católica ou mesmo sem profissão de fé específica. A base da chamada “classe média tradicional”[2].
Por outro lado, a massa de evangélicos não faz parte desse grupo. Ela é majoritariamente preta, feminina e pobre, moradora das periferias das grandes cidades. O “observador social”, portanto, não faz parte subjetiva e objetivamente desse grupo. Ao contrário, o vê como elemento externo e curioso, com o qual pode ou não se aproximar ideologicamente, a depender de seus objetivos programáticos. Isso vale para os grupos tradicionais de esquerda, cujos partidos são dirigidos por pessoas da classe média tradicional e, nas universidades, obviamente, tem seus representantes desse mesmo grupo[3].
Nesse sentido, há uma diferença importante entre “quem fala sobre os evangélicos” e quem são os evangélicos. Essa diferença é fundamentalmente de classe, mas se não observada aparece como uma questão de opinião ou de divergências ideológicas, por vezes explorada por conservadores para indicar que evangélicos seriam essencialmente conservadores e os grupos de acadêmicos, jornalistas ou observadores sociais essencialmente liberais e, por isso, incapazes de se compreenderem ou mesmo atuarem politicamente em um mesmo sentido. A questão de classes desaparece e uma aparente disputa de valores sobe ao palco.
A mágica do debate social cria um ilusionismo que torna possível autores como Juliano Spyer simplesmente descreverem relações existentes entre evangélicos e chaparem a realidade social como uma questão de compreensão ou não dos valores essencialmente inculcados no grupo, de modo que o apoio ou não de evangélicos a candidaturas de esquerda ou de direita diriam respeito a aceitação ideológica dos conteúdos imutáveis desses religiosos. Com isso, dados e relações sociais e institucionais de dominação e conflito deixam de serem observados, substituídos pelas chamadas “pautas morais” como determinantes para eleições e apoio das massas.
Nesse sentido, é possível vermos que ainda que os dados eleitorais do último pleito indiquem que o apoio à esquerda veio majoritariamente de pessoas pretas, de mulheres, pobres e com menor grau de escolaridade, a fala comum na imprensa e em análises acadêmicas conservadoras é de que a esquerda tem “perdido apoio popular” por não se adequar aos valores evangélicos[4]. Nesse sentido, ao vermos que entre os empobrecidos e sabotados pela sociedade seguem sendo a massa de apoio à esquerda e que, ao mesmo tempo, entre os evangélicos há o desvio desse padrão geral, ao invés de questionarmos o porquê desse desvio, ou seja, quais relações sociais/institucionais existentes nas organizações que organizam e esse grupo, apenas reproduzimos o óbvio: evangélicos não tem apoiado a esquerda em sua maioria.
Sim, mas se entre os observadores sociais (tradicionalmente de classe média) e a massa evangélica (composta majoritariamente pelas classes baixas) há diferenças consideráveis de funções, posições na divisão social de trabalho e de poder, dentro dos evangélicos e suas instituições não haveria também essas diferenças? Ou são um grupo monolítico, igualitário, amplamente democrático e consensual? Esse passo é fundamental para a análise crítica, pois, afinal, quem fala pelos evangélicos? São em sua maioria pobres, pretas de periferia? Se não, por que nesse grupo a massa não está refletida em seus representantes?
Quem fala pelos evangélicos?
É óbvio que, e notório que hoje, ideologicamente o grupo evangélico é majoritariamente conservador em uma série de aspectos da vida social. Por outro lado, trata-se de um grupo composto por minorias e dependente dos programas sociais e de inclusão dirigidos e implementados pelos governos de esquerda a partir das eleições de 2002. Esse tipo de contradição deveria levar o “observador social” a se questionar por que isso ocorre. Contudo, a distância entre as classes médias tradicionais e as classes baixas ou mesmo as por vezes chamadas de “novas classes médias” tem obstaculizado a capacidade de criticamente avaliar o fenômeno.
A explicação e conceitualização de classes desenvolvida por Jessé Souza nos ajuda a precisar melhor do que estamos falando. Quando falamos de classes médias tradicionais, nos referimos aos grupos de pessoas majoritariamente brancas, que ocupam posições privilegiadas na divisão social do trabalho (desde profissionais liberais a empresários grandes e médios) e que possuem recursos suficientes para garantirem tempo de formação qualificada para seus filhos e manutenção de suas posições na reprodução social. Diferente, portanto, da classe de “batalhadores”, cuja qualificação profissional não é especializada, ocupando posições pouco valorizadas na divisão social do trabalho e que não possuem recursos suficientes para garantir uma ascensão social, senão que dependentes de programas sociais de apoio e de grande esforço individual e familiar para garantir alguma qualificação profissional ou de ensino superior.
Este último grupo é a base das “novas classes médias” e mesmo das “classes médias baixas” em algumas classificações. São pobres, moram nas periferias e nas bordas de favelas, mas não são a “ralé”, incapaz de acessar recursos que garantam algum privilégio social e posição relativamente estável na divisão social do trabalho. Esse grupo de “batalhadores” compõem a maior parte dos empobrecidos evangélicos que “desviam do padrão” do apoio das esquerdas. Ao mesmo tempo, não aparecem como os representantes do grupo. Ao contrário, as lideranças que figuram ou se apresentam como vozes dos evangélicos são de classe média, ainda que “não tradicional”. São, em geral, homens, brancos, filhos ou parentes de lideranças religiosas que herdaram de seus antecessores próximos a posição privilegiada de liderança dentro de uma instituição evangélica, podendo atuar como planejadores e observadores sociais, só que agora de dentro das igrejas.
No início do século XX, os evangélicos (especialmente pentecostais, que compõem 80% desse segmento no país) das periferias tinham o mesmo perfil que os de hoje: mulheres, pretas e empobrecidas, com baixa escolaridade. As igrejas eram lideradas primeiramente por europeus, mas logo surgiram lideranças locais, que garantiam seus postos por possuírem habilidades específicas de administração, planejamento, leitura etc. Ou seja: grupos com acesso a privilégios sociais que possibilitavam uma atuação qualificada do ponto de vista institucional[5].
Essas lideranças a partir dos anos de 1950 já não organizaram a expansão das igrejas de maneira espontânea e sem planejamento, senão que passaram a criar regramentos, burocracias mínimas que garantiam relações de domínio e manutenção de privilégios, assim como o posicionamento estratégico de suas instituições com classes tradicionais – militares, médicos, juízes e advogados etc. Formalizaram suas regras internas (com respeito aos critérios para lideranças, tipo de vestimenta para homens e mulheres, proibições em relação a atividades e condutas etc.) e se aliaram ao poder vigente na época: a ditadura militar de segurança nacional.
Desde então, as castas de líderes se formam, as disputas de poder sobre convenções se intensificam e tem início as dinastias pentecostais (como bem trabalha Marina Correa[6] a respeito das Assembleias de Deus). Grandes líderes preparam seus filhos e/ou parentes para assumirem seus postos e seguirem na administração da instituição religiosa. Garantem, portanto, tempo de formação e aquisição de recursos sociais necessários para manutenção de suas posições na igreja e, ao mesmo tempo, na divisão social do trabalho. Estes falam por suas membresias e determinam sobre elas. Novos atores de classe média que passam a disputar espaço com as classes médias tradicionais, vindos não das instituições consolidadas e antigas (como universidades, grandes empresas, profissionais liberais ou mídia tradicional), mas das igrejas, cuja membresia se concentra nas periferias das cidades.
Trata-se de um grupo e um poder “externo” as relações e dinâmicas sociais tradicionais de nosso país. Um grupo que se fortaleceu impulsionado pelo desenvolvimento e modernização capitalista que expulsaram as massas populares do campo para as cidades, sob uma nova dinâmica de trabalho e reprodução familiar e social, e em territórios periféricos não povoados, sem estrutura, equipamentos e serviços fundamentais e sem laços sociais estabelecidos. As igrejas, nesse cenário, passaram a ser um centro de acolhida e apoio da população trabalhadora recém-chegada e que buscava se adaptar às novas relações produtivas modernas e ao novo modo de vida urbano.
Em diferentes ondas de expansão e com certa complexidade de denominações, os evangélicos crescem em número e em influência, tendo novas gerações de fiéis que nascem em lares de pais e mães já convertidos. Pessoas, portanto, que são inseridas socialmente mediadas pela instituição religiosa, suas dinâmicas e relações de poder. Sob esse quadro, agora, podemos começar a compreender que no interior das igrejas também há diferenciação de classes entre lideranças e membresia, assim como relações de poder e dominação entre quem ocupa cargos decisórios e quem não, quem fala “pelos evangélicos” e quem “são os evangélicos”.
As classes sociais e a ideologia conservadora
A luta de classes não está apenas fora da igreja: ela é um elemento constitutivo das relações de poder dentro das instituições religiosas. As lideranças que determinam os rumos das igrejas são de classes médias e reproduzem, majoritariamente, a ideologia conservadora de classe média. Isso significa que realizam suas funções e escolhem suas posições políticas tendo em vista a manutenção da ordem social que garante seus privilégios.
Historicamente, para a consolidação das igrejas na sociedade brasileira, o alinhamento das lideranças se deu com grupos reacionários, adequando-se às orientações da ditadura militar e reproduzindo seus conteúdos em suas pregações e mesmo estruturas de poder e autoridade internas. Toda essa dinâmica garante as bases de nosso quadro atual, na qual líderes exercem um tipo de dominação direta sobre os fiéis, a partir de uma instituição consolidada e que media as relações sociais dos membros. Isso não significa que o voto evangélico seja um “voto de cajado” ou que a membresia seja ignorante ou ludibriada pelos pastores, senão que a ideologia de classe média e reproduzida nas dinâmicas institucionais da igreja, em sua distribuição de poder e nas mensagens pregadas como valores divinos nos dias de culto.
Sob essa perspectiva, conseguimos encontrar as relações que tornam possível um desvio da base social desse grupo religioso (composto majoritariamente por mulheres, pretas e periféricas) em relação ao padrão geral nas eleições majoritárias para o cargo do executivo[7]. Entre católicos, o fenômeno é oposto. Esse grupo, que concentra metade do eleitorado, apoia em sua maioria candidatos à esquerda. Se remontarmos o histórico da transição forçada (e violenta) da população do campo para a cidade, vemos que a base de mobilização popular era camponesa e católica, ligada à teologia da libertação e as Comunidades Eclesiais de Base. Nas cidades, por sua vez, o papel de organização da população ficou a cargo das instituições evangélicas, nas periferias, que construíram uma nova base e hoje colhem seus frutos.
Dessa maneira, temos uma religiosidade que consolidou os grandes movimentos sociais do pais e, inclusive, o maior partido de esquerda existente (o Partido dos Trabalhadores), e outra que agora disputa seu espaço com novos modos de mobilização e organização de comunidades nas periferias das cidades. Essa organização, por sua vez, tem caráter conservador, moderno e capitalista. A distância entre a esquerda e esse novo grupo, portanto, não tem a ver com uma questão de discursos ou ideologias fundamentalmente, senão historicamente com a formação de movimentos e classes sociais com posições distintas diante da modernização capitalista brasileira.
[1] Ver Flávio Pierucci, “Representantes de Deus em Brasília: a bancada evangélica na Constituinte”, in Anpocs, Ciências Sociais Hoje, 1989, São Paulo, Vértice/Editora Revista dos Tribunais/Anpocs, pp. 104-132.
[2] A esse respeito, ver o artigo “O nome é luta de classes, queridos”, publicado pela Revista Zelota (2023): https://revistazelota.com/o-nome-e-luta-de-classes-queridos/#nota1
[3] A esse respeito, ver o artigo “Quem fala sobre os evangélicos e porque isso importa”, publicado pela Revista Zelota (2023): https://revistazelota.com/quem-fala-dos-evangelicos-e-por-que-isso-importa/
[4] A esse respeito, ver o artigo “No vale de lágrimas entre a política e a religião”, publicado pela Revista Zelota (2023): https://revistazelota.com/no-vale-de-lagrimas-entre-religiao-e-politica/
[5] A esse respeito, ver “Fundamentalismo e reprodução social na América Latina”, tradução publicada pela Revista Zelota (2023): https://revistazelota.com/fundamentalismo-e-reproducao-social-na-america-latina/
[6] Ver Marina Correa, Dinastias assembleianas: sucessões familiares nas Igrejas Assembleias de Deus no Brasil. São Paulo: Editora Recriar, 2020
[7] Ver o artigo “No vale de lágrimas entre a política e a religião”, publicado pela Revista Zelota (2023): https://revistazelota.com/no-vale-de-lagrimas-entre-religiao-e-politica/