O CIMI – Conselho Indigenista Missionário e o cenário político-indigenista
Luis Ventura, Secretário executivo CIMI, Rafael Modesto, Paloma Gomes e Nicolas nascimento, assessores jurídicos CIMI
Não é admissível o retrocesso depois da conquista de 1988.
Nos últimos meses foram intensas as movimentações políticas em torno da discussão sobre os direitos dos povos indígenas. Tivemos a tese fixada pelo STF no RE 1.017.365 (Tema 1031), da qual trazemos alguns elementos para reflexão. Ainda, mesmo após decisão da Suprema Corte, o Congresso Nacional fez aprovar o PL (Projeto de Lei) 2903/2023 que tinha como seu principal objeto, a institucionalização do marco temporal – além de um conjunto de maldades associadas à tese que impede o reconhecimento do direito originário dos Povos Indígenas do Brasil. Por fim, tivemos o veto parcial do chefe do poder executivo que também se associou à tese fixada pela Suprema Corte. Agora, resta ao Congresso Nacional analisar o veto para mantê-lo ou, por outro lado, seguir o tensionamento político e derrubar o veto do Presidente da República, ficando isolado e como único responsável pelo retrocesso na matéria indígena em nosso país. Nesta última hipótese, mais uma vez a matéria será levada a apreciação do STF.
Nesse sentido, como é sabido por todos, o Supremo Tribunal Federal – STF encerrou os debates sobre o estatuto jurídico-constitucional das relações de posse das áreas de tradicional ocupação indígena e fixou tese para afastar o marco temporal e o renitente esbulho, garantiu mais uma vez a constitucionalidade do Decreto 1775/96 – que regula o processo administrativo de demarcação –, e estabeleceu o direito de indenização aos ocupantes não indígenas de boa-fé que porventura receberam, do poder público, títulos, posses e domínios sobre terras indígenas.
Outro aspecto de grande relevância foi a fixação da garantia do acesso à justiça aos povos indígenas na tese de repercussão geral, dando efetividade ao art. 232 da nossa Constituição – visto que esse direito vinha sendo recorrentemente obliterado.
Importante destacar que o STF não criou nenhuma fase a mais para o processo de demarcação. O procedimento demarcatório segue o rito adotado desde o ano de 1996 (Decreto 1775/1996), em todas as suas fases. O que a Suprema Corte fez foi possibilitar as indenizações no valor da terra nua, em casos onde não tenha existido ocupação tradicional indígena ou disputa pela posse no tempo da promulgação da Constituição. Somente nesta circunstância, e desde que inviável o reassentamento do particular de boa-fé, abre-se a possibilidade de indenização correspondente ao valor da terra nua.
Contudo, o que causou espanto foi o fato de mesmo em a Suprema Corte ter fixado entendimento constitucionalmente adequado em relação ao afastamento da tese do marco temporal, do renitente esbulho e ter reconhecido a possibilidade de revisão de processos demarcatórios viciados ou que não obedeceram ao direcionamento constitucional, o Congresso fez aprovar lei que conflita com o texto da constitucional e com a interpretação do STF sobre a matéria.
O que o Congresso fez foi invadir a competência da Suprema Corte ao, por meio de Lei Ordinária, trazer para si, de forma ilegítima, a capacidade de modificar e diminuir direitos fundamentais consolidados na Constituição como cláusulas pétreas, como é o caso do direito dos povos indígenas às terras que tradicionalmente ocupam.
Segundo o Jornal O Globo, em matéria veiculada em 07.06.2023, a tese ruralista que poderia abrir uma restrição ao direito de demarcação foi derrotada em 1988 e o ator principal para a garantia do texto como o conhecemos hoje, foi Jarbas Passarinho. Vejamos:
As notas dos debates e propostas que antecederam a Constituição mostram que a redação final foi fortemente influenciada por uma emenda do então senador Jarbas Passarinho (PDS-PA). Originalmente, a proposta de texto constitucional garantia o reconhecimento aos indígenas dos direitos sobre “as terras de posse imemorial onde se acham permanentemente localizados”. Por sugestão de Passarinho, a redação do artigo foi alterada para a versão hoje em vigor, e que será analisada pelo STF, para garantir aos povos originários direitos sobre “as terras que tradicionalmente ocupam”.
Ainda, a proposta contava com a ideia de que as terras não ocupadas no período constituinte por indígenas seriam tomadas como devolutas e entregues à propriedade dos Estados Federados. Segue o Jornal O Globo para mostrar que a tese do marco temporal saiu vencida naquele período:
Além disso, o artigo 266 foi subtraído. Ele existia na primeira versão do texto que limitava o direito àqueles indivíduos “que, efetivamente, habitem terras indígenas e não possuam elevado grau de aculturação”. Além de instituir um “marco”, ainda determinava outra limitação ao criar duas categorias de indígenas: os “índios” e os “índios aculturados”, sendo que os últimos não estariam sujeitos aos direitos constitucionais garantidos naquele capítulo.
Nesse sentido, é possível então perceber que o que houve recentemente no Congresso Nacional foi uma tentativa de superar no “tapetão” o que já vencido no debate constituinte, declarado inconstitucional pelo STF no julgamento do Tema 1031 (caso Xokleng) e mais recentemente vetado pelo chefe do poder executivo (PL 2903/2023) – após aprovação pelas duas casas legislativas, o Presidente Lula vetou todos os pontos que vertiam sobre marco temporal e demarcação de terras indígenas.
No mesmo sentido do que demonstrado pelo Jornal O Globo, para corroborar da explicitação sobre tais fatos, importante resgatar uma passagem do documentário denominado “Os direitos indígenas na constituinte” que desnuda os bastidores do debate Constituinte e evidencia que o marco temporal saiu derrotado e jamais foi inserido na Constituição brasileira. Vejamos da transcrição de trecho do documentário realizado pelo Conselho Indigenista Missionário – CIMI:
No segundo turno de votação em plenário, a mobilização dos índios, principalmente vindas do Nordeste e Kayapó, conseguiu que se eliminasse do projeto, um dispositivo que considerava de propriedade dos Estados as terras de extintos aldeamentos indígenas. Esse dispositivo, se fosse mantido, impediria a luta de muitas nações indígenas, pela recuperação de áreas de aldeamentos ilegalmente extintos no passado.
Isso desnuda a intencionalidade de setores que têm interesses nos territórios indígenas. Nem o Constituinte Originário, nem o texto da Constituição e muito menos o Supremo, este com competência constitucional para a intepretação da Norma Fundamental, associaram o direito originários dos povos indígenas a uma limitação temporal. Ainda, segue o mesmo entendimento o Poder Executivo ao vetar todos os limitadores da teoria do indigenato, do direito originário.
Para passar ao arremate, mais uma vez nos utilizamos do importante revolvimento feito pelo Jornal O Globo do período constituinte e da atuação demasiada importante de Jarbas Passarinho:
Na justificativa de sua proposta, Passarinho deixou claro que seu desejo era preservar os direitos de indígenas que tivessem sido expulsos de seus territórios ou migrado deles: “A expressão ‘posse imemorial’ (…) poderá ensejar a expulsão ou perda do direito à terra pelas comunidades indígenas, inclusive prejudicando irreversivelmente aquelas já vitimadas por processos de transferência forçada”, defendeu Passarinho, que morreu em 2016.
Nada, absolutamente nada justifica a rasa e vazia intencionalidade economicista e predatória sobre as terras dos indígenas. A vontade do Constituinte foi a de garantir a demarcação de suas terras, independentemente de limitação temporal. Inclusive, e isso fica claro, o texto aprovado tinha como objetivo central a devolução, aos indígenas, das terras de onde foram compulsoriamente retirados antes de 1988.
Por isso mesmo se associam à tese do indigenato, do direito originário, dois dos três poderes da República: judiciário e executivo. O isolamento do Congresso Nacional mostra e evidencia as reais intenções de grupos econômicos que ocupam espaços importantes no Parlamento. Por outro lado, esperamos sim que o Congresso Nacional ao analisar o veto do chefe do poder executivo possa seguir o mesmo entendimento, numa clara, republicana e constitucionalmente adequada decisão.
Não esperamos muito do Congresso Nacional. Mas ainda acreditamos na força democrática que permeia as instituições, a sociedade e acreditamos no respeito aos direitos dos povos originários. Ao final, com muita perseverança, mobilização e presença ancestral, prevalecerá o direito fundamental, como quis o Constituinte de 1988.