De repente, uma luz fria esquentando os ânimos?
Leonardo Melgarejo – Reded e Geração68
Se é que dá para fazer analogia otimista a partir do drama de milhares de pessoas, arrisco supor que estes dias sem energia elétrica em Porto Alegre possam tirar das sombras o que as bases locais dos governos golpistas vêm armando para o nosso desprazer.
Na região metropolitana de Porto Alegre, as comidas apodrecendo em geladeiras, a decepção de não encontrar gelo nos supermercados, o esforço de subir escadas e morros com baldes d’água, o drama da higiene de doentes e idosos, as declarações e atitudes ofensivas aos direitos humanos e às expectativas de cidadania, por parte do prefeito, transbordaram do pesadelo para a realidade. O povo, após eleger várias vezes os mesmos principais responsáveis pela ausência de atitudes compatíveis com a democracia, sentiu o baque.
Nos pontos de maior tensão, populares vieram às ruas, fizeram barricadas, queimaram pneus e gritaram seu sofrimento. O movimento ali esboçado não cresceu porque foi contido a bombas e balas de borracha.
Senhoras de idade que, imbuídas de paciência e resignação, foram em busca de alternativa para recarregar celulares, e não perder contatos com familiares, vivenciaram reuniões inéditas, no piso frio de supermercados e outros locais com geradores, que o permitiram.
Dona Maria Goulart Mota (sentada), 74 anos, residente na vila dos comerciários, bairro Santa Tereza (POA) comentava que novamente (pela terceira vez em poucos anos), perdeu tudo que tinha guardado no freezer. Sem água em casa, expressava sua tristeza em saber que, com tanto dinheiro gasto para satisfação dos turistas que frequentam a orla do Guaíba, a prefeitura afirmasse não ter responsabilidades para com a lenta reposição da rede elétrica, nem recursos para comprar os motores que, na falta de eletricidade, poderiam manter ativa a rede de água em seu bairro.
Sua nova amiga, Catarina Beatriz da Silva da Silveira (em pé), 66 anos, moradora do bairro da Gloria, dividia preocupação com o futuro e agradecia a “bondade do supermercado”, por lhe permitir carregar a bateria do celular: “eles sabem que precisamos comprar de novo tudo que foi perdido, mas não deixa de ser uma gentileza”.
Elas comentam que a tensão está crescendo em espaços que a mídia não enxerga, e que isso se perceberia tanto no tom como no foco das conversas, bem como na diversidade de pessoas acorrendo todo dia `aqueles pontos de recarga.
Pensam que isso (a tensão) pode vir ser perigoso se as barricadas nas ruas se multiplicarem e se aqueles que mais precisam, para os quais a estabilidade familiar já está ameaçada, e que se percebem sem condição de reposição das perdas, continuarem sendo os últimos na linha de prioridades das ações do governo municipal.
Destes contatos emerge a coerência e a unicidade de um diagnóstico popular não escrito: a privatização da energia, na capital gaúcha, relegou o grupo no poder, envolvendo vereadores, deputados prefeito e governador, ao papel secundário de porta vozes da transnacional incompetente que, com o concurso daqueles, assumiu o monopólio dos serviços de energia. Funcionários públicos, eleitos para assegurar respeito e atendimento às necessidades da população, se limitando a desconversar e a pedir paciência, repetindo o óbvio: sem luz, as bombas não funcionam e nos lugares altos, onde vivem os pobres, a água precisa ir de carona, em caminhões pipa. Mas com a situação alcançando bairros nobres, a coisa muda e a classe média percebe de cabelos em pé ao escutar recomendações para não sair de casa.
Os apoiadores do esfacelamento daquela Porto Alegre que já abrigou os Fóruns Sociais Mundiais se perceberam irmanados às vítimas tradicionais da mão grande dos interesses corporativos. A supressão de serviços básicos essenciais à normalidade democrática, assim como o câncer provocado pelos agrotóxicos e as mortes de covid pela falta de vacinas, e o medo do futuro, de repente estavam ameaçando a todos, sem distinção de renda.
Com isso, deixava de ser possível jogar a culpa nos comunistas, no PT bem como nos “eventos extremos e inesperados”. Os negacionistas encastelados em centros administrativos capturados pela lógica das soluções de mercado se viram desmascarados pela repetição dos dramas que eles insistiam em apresentar como hipóteses improváveis geradas pela mente de ecochatos alarmistas.
E deu nisso. As consequências dos desmontes de autarquias, para privatização de serviços básicos essenciais, revelaram nesta semana, mais do que a incompetência e a má fé de gestores públicos irresponsáveis. Não há como ocultar tragédias que se repetem. Crises semelhantes, com ventos fortes, queda de árvores, falta de luz e água já haviam ocorrido em 2016, quando 250.000 Porto Alegrenses ficaram sem energia (340 mil em todo o RS) e em 2022 (afetando cerca de 200 mil moradias), com as inundações e ciclones de 2023 e, agora em 2024. Na primeira situação (2016), a solução do governador Leite, que para isso contou com o apoio do prefeito Sebastião Mello, levou à privatização da Companhia Estadual de Energia Elétrica (CEEE, em 2021). Antes disso o estado assumiu o ônus de um plano de Plano de desligamento voluntário de funcionários especializados (com 998 adesões) que dominavam as peculiaridades da rede. Com equipe enxuta e monopólio do abastecimento, adquiridos por R$100 mil, a CEEE Meridional assumiu responsabilidade de atender uma clientela cativa (mais as dívidas geradas para facilitação da venda) e, em meio à festa, precisou encarar o “evento extremo e inesperado” de 2022. Ali, milhares de moradias sem energia por vários dias, dificuldades de reposição das redes, necessidade de contratar profissionais sem experiência e outros fatos levaram a Agência Nacional de Energia Elétrica (ANEEL) a classificar os serviços da Companhia Estadual de Distribuição de Energia Elétrica (CEEE-D), como sendo o pior do Brasil. Merece destaque o fato de que este parece ser o padrão da Equatorial. Sua subsidiária no Norte (a Equatorial Pará), após privatizada passou da segunda para a sétima posição. E a Equatorial Maranhão, que substituiu serviços colocados em 8ª posição no ranking nacional, caiu para a 28ª classificação (entre as 29 operadoras atuando no Brasil). Pior do que no Maranhão, apenas no RS.
Em todos estes casos, uma mesma realidade: a empresa privada que assume o controle de bem essencial, ao operar em regime de monopólio, trata de reduzir a capacidade de resposta à situações emergenciais, com paralelo enxugamento de custos relacionados à qualidade. Ao mesmo tempo, ocorre ampliação nos preços ao consumidor.
Como isso poderia ser melhorado? Certamente, não com parcerias obscuras onde os governos municipais e estaduais, de início estimulam e festejam a privatização (talvez acreditando que com isso estariam se livrando de responsabilidades intransferíveis?) e, após, se somam ao discurso vitimista, alegando “azar” e imprevisibilidade climática. Possivelmente, e isso é o que os gaúchos esperariam, haveria maior sucesso em gestores mais respeitosos e previdentes. Afinal, a crise de 2024 não é a última e espera-se que, antes das próximas, sejam estabelecidos sistemas rígidos de controle da qualidade (e preço) dos serviços bem como da capacidade de resposta dos gestores à contingências que não podem ser evitadas.
Não é possível que voltemos a escutar do governador do estado e o prefeito da capital xororôs de perplexidade diante da “complexidade” de dramas que se alimentam da irresponsabilidade de suas orientações. Não é possível aceitar a inexistência de plano/mecanismo de reação capaz de atender crises que se repetem, de forma ampliada, ano após ano.
Por isso a expectativa positiva enunciada na primeira frase deste texto. Se os golpistas, vendilhões da pátria como dizia Brizola, não aprenderam nada com as tragédias de 2016, 2022 e 2023, talvez escutem o recado das ruas de 2024.
O povo sabe que já não é possível dar continuidade àquela vida descuidada que se pensava poder continuar levando sob a batuta de prefeitos e governadores do naipe destes últimos. Sabe que não podemos aceitar administradores empenhados em reduzir, na prática, o conceito de dignidade humana à questões orçamentárias que priorizam a defesa dos direitos de propriedade. Os direitos sociais, coletivos, assim como as prioridades políticas e de gestão públicas precisam ser orientadas para garantir as bases essenciais à uma existência humana digna. Acesso à luz, água, saúde, segurança, educação e preparo para o exercício da cidadania são indicadores de conteúdo que mapeiam a existência e a validade da noção de dignidade, por parte dos gestores. O que vem se passando em Porto Alegre e no RS negam esta assertiva
E isto, em ocorrendo, justifica a ebulição que vimos iniciar em Porto Alegre e que evoluirá em exigências de desmonte das bases golpistas que ainda ocupam a prefeitura e o Piratini.
Esta é a luz fria que esquentará os ânimos daqueles que sabem a importância da cidadania e da dignidade humana.
ALFREDO GUI FERREIRA
23/01/24 @ 14:38
Muito bom o artigo de Melgarejo!