Agroecologia – somos um bando e muitos outros
Leonardo Melgarejo – ambientalista e colaborador da Rede Democracia e Geração 68
Há alguns anos as pessoas que falavam em defesa da natureza eram classificadas como doidas, insensatas, tolas, folclóricas… Nas universidades, pelo menos nas de Agronomia que eu frequentei, professores faziam piadas, ridicularizando as perguntas daqueles alunos corajosos, dispostos a criar disputas para além das cartilhas.
“Influência da Lua? Mas eu planto na terra”. “Produção sem defesa contra lagartas? Por causa dos passarinhos?”. “Aqui não se ensina poesia”. “Não caiam na conversa daqueles doidos. Vocês estão aqui para aprender as verdades que sustentam a produção”. “Se fosse errado ou fizesse mal, os cientistas não estariam recomendando”.
Havia uma espécie de tsunami negando validade a tudo que não fosse decoreba com aceitação no mercado. Com exceções, é claro, a serem lembradas com respeito e carinho. Mas a onda só crescia, e deu no que deu. Gerações de profissionais com o espírito crítico embotado, convencidos/as de que qualquer crítica a “seus conhecimentos” carregava a negação de suas crenças e personalidades, afundados em lutas de vida e morte para serem reconhecidos como ricos. E isso fez escola, criando exemplos de que na vida, nada valeria mais do que o poder de compra e, na ausência deste, sua simulação ou aparência.
O outro lado deste sorvedouro excludente foi que ali se deu a consolidação de uma imagem verdadeiramente desrespeitosa a tudo que se associasse ao modo de ser, de pensar e de viver amistosamente em relação à natureza. Coisa típica de “colonos”, “ecochatos”, “bichos-grilos”, ecologistas e outros seres estigmatizados por aquele comportamento tido como sinalizador do “atraso”, que por isso se viram impedidos de acessar espaços relevantes, onde ocorriam as formulação e decisões de políticas públicas. E chegamos às crises atuais.
Com a solidariedade catalogada entre os entraves para “vencer na vida”, o espírito de rede foi se perdendo, curiosidades foram sendo embotadas e portas se fecharam à compreensão do metabolismo ecossistêmico que rege a vida na terra. Isto com certeza retardou (por décadas), mas não deteve o enraizamento que agora floresce, na repercussão de mentalidades avançadas que tentaram nos alertar. Como José Lutzenberger, Ana Maria Primavesi, Luis Carlos Pinheiro Machado e Maria José Guazzelli, entre outros tantos e para ficar apenas em alguns poucos nomes com que tive a felicidade de aprender.
Hoje se percebe que eles venceram, e que aquelas tentativas de bloquear a emergência de uma consciência nova e coletiva, sobre a integração vital compartilhada pela vida, em todas suas dimensões, fracassaram.
E isto se viu revelado neste ano de 2023, em pelo menos dois grandes eventos:
No Rio de Janeiro, o 12º Congresso Brasileiro de Agroecologia reuniu mais de 6 mil representantes da fina flor da juventude consciente deste pais – e, reconheça-se, também vários/as nem tão jovens, mas igualmente atentos/as – dispostos a propor e operar mudanças no destino do planeta, coletivamente e a partir de seus espaços de atuação individual. A Agroecologia na Boca do Povo, lema deste 12º CBA, transbordou de temas relacionados aos espaços produtivos para a simbologia, a espiritualidade, a ciência e as falas de todos os nossos povos, com suas verdades, seus deveres, seus anseios, seus direitos, sua arte, sua cultura e seus compromissos com a vida.
Em Curitiba, 50 mil pessoas estiveram 20ª Jornada de Agroecologia do Paraná, outros milhares de jovens de todas as idades fortaleciam suas conexões e construíam propostas para generalização de acesso ao mais básico dos direitos humanos: uma alimentação adequada e saudável, para todos. Condição para a realização dos demais direitos estabelecidos na Carta da ONU, a alimentação saudável pode, deve e será garantida pelo empenho e o apoio dos construtores e operadores da agroecologia, às políticas públicas em fase de estruturação.
E estes são alguns dos fatos que revelam estarmos diante de uma sociedade em ebulição. Não há registro nem seria de esperar mobilizações tão amplas, espontâneas e formadoras de reverberações em todas as áreas, sem subsídios e avançando na direção oposta do preconizado pela história oficial e pelos interesses de mercado. E aquelas pessoas são construtoras de consciências e protagonistas de mudanças em seus territórios.
Esta juventude, que com sacrifícios, foi chegando aos poucos, ocupando espaços e tecendo a rede ilustrada pelos seus cantos, gestos e confiança na poesia da vida, já não cabe em salas e pavilhões. Está aprendendo e ensinando nas matas, nos campos e nas ruas da cidade.
Está preparada, está crescendo em força, e vai mudar o mundo.
Como antecipou Bebeto Alves, isto indica que hoje podemos sonhar com a cantoria de milhões de bocas, porque de fato somos um bando. Mais do que isso, somos um bando e muitos outros.