A curiosa discussão sobre o relativismo da democracia, por Luís Nassif
Luis Nassif
jornalggn@gmail.com
Jornal GGN
O caso Assange mostra que democracia é uma conceito absoluto, mas a americana é relativa em relação à liberdade de expressão
É curioso o rigor dos acadêmicos com conceitos. A mais recente discussão foi em torno de declarações de Lula, afirmando que democracia é um conceito relativo.
Imediatamente, os guerreiros conceituais se colocaram em campo, discordando: não há relativismo no conceito de democracia. Ou o país é uma democracia, ou não é.
O máximo que se permitem é que existem países com democracias mais perfeitas e menos imperfeitas. Ou seja, o conceito não é relativo. Relativas são as definições de países democratas. O que, convenhamos, é de um preciosismo hilário.
Um parêntesis: independente de estarem corretas ou não, as declarações de Lula são gasolina na fogueira do discurso anti-lulista, em um país em que até conselhos de participação são vistos como castrismo, chavismo, bolivarianismo ou outro ismo qualquer.
Primeiro, vamos ao conceito de democracia:
- A democracia é um sistema político no qual o poder é exercido pelo povo ou em seu nome, geralmente por meio de eleições livres e justas.
- É baseada em princípios fundamentais, como a participação popular, a igualdade de direitos e a proteção das liberdades individuais.
- Princípios como a liberdade de expressão, a liberdade de imprensa, a liberdade de associação e a liberdade de religião são essenciais para o funcionamento saudável de uma democracia.
- Os cidadãos têm o direito de expressar suas opiniões, debater ideias, formar partidos políticos e organizações civis, e praticar sua religião de acordo com sua própria consciência.
- A democracia também enfatiza a proteção das minorias e a inclusão social. Todos os cidadãos devem ter os mesmos direitos e oportunidades, independentemente de sua origem étnica, religião, gênero ou qualquer outra característica pessoal. A igualdade perante a lei é um princípio central da democracia.
- Além disso, a democracia pressupõe a existência de um sistema de governança transparente e responsável. Os governantes devem prestar contas aos cidadãos por suas ações e decisões, e os mecanismos de controle e equilíbrio devem estar em vigor para evitar abusos de poder.
Uma brilhante lista de conceitos imutáveis. Vamos às análises de casos:
Nos Estados Unidos, berço da democracia ocidental, as eleições são influenciadas fundamentalmente pelos grandes financiadores, que dominam os dois partidos, o Republicano e o Democrata. Junto à opinião pública, os interesses econômicos são bancados pelos grandes veículos de mídia, associados ao grande capital.
Logo, a democracia é imutável, mas a democracia americana desobedece o item (2), que menciona igualdade de direitos.
O caso Assange mostra que democracia é uma conceito absoluto, mas a americana é relativa em relação ao item (3), que fala da liberdade de expressão.
Nos EUA, moradores negros têm três vezes mais chance de serem mortos pela polícia do que moradores brancos. Em algumas cidades, como Minneapolis morrem 28 mais negros que brancos. Logo, a democracia americana não obedece o item (5), de proteção de minorias.
Vamos analisar outro ângulo: os custos para formar um filho na Universidade nos Estados Unidos.
As mensalidades variam entre as instituições e programas de estudo. De acordo com dados do College Board para o ano acadêmico 2020-2021, a média das mensalidades e taxas anuais em universidades privadas sem fins lucrativos foi de cerca de US$ 36.880 (R$ 184 mil), enquanto em universidades públicas para estudantes residentes no estado foi de cerca de US$ 10.560 (R$ 52.800) e para estudantes não residentes no estado foi de cerca de US$ 27.020 (R$ 135 mil). Além das mensalidades, os custos de manutenção dos alunos chega a US$ 17.987 (R$ 90 mil).
E aí, a democracia americana atropelou o item (5), que diz que todos os cidadãos devem ter o mesmo direito e oportunidades.
Se descermos abaixo da linha do Equador, o jogo fica imensamente mais pesado.
Vamos ao papel da Constituição, de acordo com os teóricos:
- Limitação do poder do governo: Ela estabelece a separação de poderes entre os poderes Executivo, Legislativo e Judiciário, garantindo um sistema de freios e contrapesos que evita a concentração excessiva de poder em uma única autoridade.
- Proteção dos direitos fundamentais: A Constituição reconhece e protege os direitos e liberdades fundamentais dos cidadãos.
- Estabelecimento de um sistema de governo democrático: A Constituição estabelece os princípios e procedimentos para a realização de eleições livres e justas, permitindo que os cidadãos exerçam seu direito de escolher seus representantes.
- Definição das responsabilidades e deveres do governo: A Constituição estabelece as responsabilidades e deveres do governo em relação aos cidadãos. Isso inclui a proteção da segurança e do bem-estar dos cidadãos, a promoção do bem comum, a prestação de serviços públicos, a administração da justiça, entre outras responsabilidades.
No Brasil, o Supremo Tribunal Federal, garantidor maior da Constituição, eliminou direitos trabalhistas (considerados anacrônicos) e não colocou nenhum direito trabalhista moderno em seu lugar. Permitiu um retrocesso nos direitos.
No entanto, ele deveria obedecer ao princípio do não-retrocesso:
O princípio de não-retrocesso, também conhecido como princípio da vedação ao retrocesso social, significa que os avanços já conquistados em relação aos direitos fundamentais não devem ser revertidos ou retrocedidos. Em outras palavras, uma vez garantido um determinado direito ou benefício social, não se deve permitir que ele seja retirado ou diminuído sem justificativa adequada.
No STF, com exceção do ex-Ministro Ricardo Lewandowski e de Luiz Edson Fachin, houve retrocessos de toda ordem. Se o principal garantidor da democracia, o STF, não pratica um princípio fundamental, significa que a democracia no Brasil é relativa?
Existem eleições no Brasil e na Venezuela. Nas eleições de 2018 no Brasil, o STF impediu que o candidato favorito, Lula, concorresse à presidência. Na Venezuela, o regime de Maduro proibiu a candidatura de Maria Corina Machado.
Como fica o conceito de democracia? O Brasil é uma democracia e a Venezuela uma ditadura? Ou ambos são ditaduras?