Ecossocialismo ou Barbárie
Leonardo Melgarejo – colunista RedeD
Para escrever sobre as consequências a esperar neste RS que afunda por conta de erros do modelo de desenvolvimento em que nos metemos, decidi escorar este texto em resenha(1) de livro que nos traz a atualidade e o valor do pensamento de Rosa Luxemburgo. Isto porque ali se anunciava que crises como esta que agora se avoluma brutalmente por aqui, não resultam de eventos excepcionais nem se limitarão ao que estamos observando neste momento ou neste território. Ademais, como em todos os dramas, é certo que as cicatrizes resultantes não permitirão que esqueçamos as causas, e ajudarão a remodelar os comportamentos e os aprendizados a respeito de quem somos, de quem escolhemos para estar conosco e nos representar em horas boas, e do que isso pode significar nos momentos ruins.
Para começar, precisamos assumir que não estamos diante de um evento extremo, isolado, esporádico e fruto da aleatoriedade climática como insistem nosso governador, o prefeito de Porto Alegre e muitos outros. Se trata isso sim, de um processo degenerativo. Algo que se não for contido crescerá pela retroalimentação das causas que estão em sua origem, e avançará numa sucessão de colapsos. Simples assim: a destruição de redes que sustentam o equilíbrio ecossistêmico acelera a degradação das forças que poderiam recuperá-lo, jogando o todo para novos e mais distantes patamares de estabilidade que, ao final, determinarão, espécie por espécie, família por família, filo por filo, a inexorável inviabilização da vida que conhecemos.
É o que alertavam os saudosos ecochatos dos anos 60: assim como o crescimento ilimitado não é possível em um ambiente de recursos finitos, não há futuro para uma sociedade pautada pela busca de sucessos discriminatórios, em permanentes disputas fratricidas. A filosofia do todos contra todos e azar deles serve – e tão somente – para construir a solidão, o isolamento, a irresponsabilidade e o caos. E já está mais do que bem demonstrado pelos fracassos civilizatórios de nossa espécie: o que importa, o que pode haver de belo e relevante em nossa vida, está na consolidação de redes de interdependência atualizadas por uma compreensão superior, onde nós, os humanos, somos apenas uma das partes relevantes.
Por descuido com esta verdade básica, a política de devastação ambiental conduzida no RS, aliada à sua posição geográfica e à confluência de forças globais potencializadas pelo aquecimento planetário só poderiam resultar no que estamos vivendo. E isto não apenas estava pré-determinado como já vinha sendo anunciado por estudiosos de diferentes áreas da comunidade cientifica. Com aqueles alertas foram sistematicamente abafados, porque comprometiam interesses de grupos beneficiados pelo esgarçamento de tecidos ecológicos e sociais importantes para a rede de solidariedade entre os pobres e os remediados, aqui chegamos.
E isso levou à naturalização de políticas públicas capturadas por interesses privados, que ocultando ou jogando sobre outros as responsabilidades de suas ações, mantiveram o nariz empinado e expandiram seu controle sobre os poderes executivo e legislativo desta parte do país. E eis que “de repente”, com o boom da crise climática, se tornou impossível culpar os deuses, o azar, ou as vítimas. Com o caos, passamos todos a entender o significado/os impactos daqueles estímulos que, financiados por dinheiro público, trouxeram a eliminação da biodiversidade, a privatização de bens comuns e serviços essenciais, a degradação fantasiada de progresso, o conluio de governadores/prefeitos/senadores/deputados/vereadores e investidores golpistas, com midias canalhas, bem como os mecanismos por eles aplicados à deseducação e alienação da sociedade.
Os reflexos estão aí, na água que desentoca todos os bichos, que assusta todos os gaúchos, que destrói patrimônios e que aleijará para sempre a vida e a economia deste Estado. As bancadas ruralistas, com a destruição das legislações ambientais, com a expansão generalizada das monoculturas anuais de exportação e seus agrotóxicos, abriram as avenidas por onde avançam a miséria, as doenças, a violência e a fome.
Ao facilitar a eliminação de processos fundamentais para a absorção das águas de chuvas, aqueles legisladores, governadores e prefeitos garantiram a aceleração de seus impactos e o potencial destrutivo que estamos vendo atuar, e que tende a ser mais intenso a cada ano. O modelo aqui aplicado é o mesmo que provoca o degelo dos pólos, o aquecimento dos oceanos, a falta de cobertura vegetal nas encostas, a destruição das matas ciliares e o novo padrão de metabolismo planetário. Suas práticas só farão crescer o volume, a velocidade e o terror associados às águas que aqui despencam (vou evitar repetir partes do muito tem sido escrito e documentado sobre isso).
As conseqüências deletérias daqueles fenômenos se ampliaram entre nós pela privatização de serviços tão essenciais como o fornecimento de energia, água potável e educação. A população perdeu o fio da meada pela destruição de processos de formação comprometidos com o despertar das consciências, a valorização do espírito critico e a criatividade orientada por utopias humanistas. Em todos os casos (e assim a lógica de mercado o determina), a lucratividade dos acionistas se estriba na supressão de “gastos” necessários ao estabelecimento de mecanismos preventivos(2), na redução da qualidade de serviços e na transferência/terceirização de responsabilidades. Uma lógica consistente com atitudes do atual governador do RS, que com seus choramingos e manifestações de surpresa tenta esconder o fato de que, após as inundações do ano passado, reservou apenas R$ 50 mil para a defesa civil(3). O mesmo se verifica nas atitudes do prefeito da capital, que esqueceu as chuvas do ano passado e ao invés de investir na manutenção das comportas e bombas de drenagem, estava preferindo “modernizar” as paradas de ônibus urbanos.
A população há de perceber estas coisas até porque, não fosse a ação do presidente da república e de organizações da sociedade civil, não haveria a quem recorrer. Os grandes responsáveis, entre eles nossos atuais e ex-governadores, senadores, deputados e formadoresde opinião reféns do agronegócio ecocida, sumiram. Estão amoitados, quem sabe aguardando oportunidade para retomar aqueles discursos onde costumam atribuir seus erros a supostas maldades de São Pedro, dos petistas ou do Lula.
Não faltam metáforas para descrever o que acontece por aqui. Em termos biológicos, o território gaúcho, está acometido por uma virose braba, agravada por metástase cancerígena e na mão de médicos negacionistas que se limitam a recomendar paciência e orações.
Em termos do ecossistema sócio-administrativo, somos cobaias de políticas estúpidas, orientadas por políticos (negacionistas) de baixo nível, cidadãos menores, eleitos por uma população enganada à doses cavalares de mentiras e ainda assim generosamente confiada em promessas que nunca se cumprem.
Infelizmente em função de seu preço altamente desmedido, o fato é que esta crise acabou desmascarado o mundo agro-pop- bolsonarista que se expandia no sul do Brasil. Com isso, nesta terra plana roída por aqueles que se empoderaram nos ameaçando com o apocalipse comunista, que diziam estarmos sendo castigados pela falta de fé, não resta mais espaço para dúvidas… não apenas o rei , mas também seus bobos e toda sua corte, sempre estiveram nus.
Bem, e quase chegado ao fim do texto, resta dizer que vivenciamos uma sinergia de eventos deletérios que (como aquela resenha sugerida indicou – e recomendo acesso às entrevistas que compõem o livro original), só será contida por intermédio de um novo pacto social, de onde a solidariedade socialista modernizada possa emergir comprometida com os direitos humanos e suas bases, e ir alem, considerando outros patamares.
Em termos sociais, a crise atual traz a expressão moderna da Barbárie, em sua fase inicial. Resulta da apatia de uma sociedade apalermada diante da ausência de freios políticos, éticos e morais (com evidentes exceções) por parte de representantes populares encastelados nos poderes executivo, legislativo e judiciário, não submetidos a processos de monitoramento e, exatamente por isso, muito afoitos e confiantes na impunidade de seus atos.
Pela oportunidade dialética que esta tragédia oferece para reversão do atual cenário, cabe voltar àquela resenha. Os autores comentados lembram que no interior das crises capitalistas sempre existem germes de socialismo (Paul Singer) e que estes, no atual momento, estimulados pelas repercussões do aquecimento global, reclamarão por um Ecossocialismo (Michael Löwy) capaz de mobilizar, pela base, os mais variados grupos e associações populares (Gilberto Mauro), que por sua vez, unidos, saberão como agir para recuperar nossa civilidade e condições de vida.
Nesta perspectiva, a crise climática tenderia a unir demandas/necessidades individuais e coletivas que, confluindo, poderiam trazer ao inconsciente coletivo anseios por uma nova realidade, uma nova configuração e um novo pacto do ser social. Retoma-se aqui o ensinamento de relações ecossistêmicas, que exigem sinergias interdependentes, que rejeitam as espécies campeãs e que negam validade à hipótese de que possa existir progresso quando poucos se beneficiam, temporariamente, da “destruição criativa” de condições de vida essenciais à todos.
É evidente que a reconstrução das estruturas demolidas no RS abrirão oportunidades de negócios, suborno e desvio de recursos públicos para sustentação da eleição/reeleição de corruptos. E é certo que ali também residirão possibilidades para a valorização de alianças e para o fortalecimento de lideranças novas ou já historicamente comprometidas com a defesa de bens e valores comuns. Aliás, é estimulante verificar a emergência de almas socialistas entre eleitores dos golpistas, pessoas que se mostram genuína e decididamente empenhadas em colaborar com os mutirões de apoio aos flagelados da enchente. São irmãos a serem abraçados e com quem estamos e sempre estaremos dispostos a reconstruir o futuro de nossas cidades, deste estado e do país.
De toda forma, e para evitar que as dúvidas sobre o que virá se percam sob o tapete dos novos dias, vale alertar: depois destas cheias relacionadas ao El Niño, virão as doenças facilitadas pelo estresse e pela queda nos níveis de imunidade; a redução na oferta de alimentos; as dificuldades econômicas. Mais adiante, tudo se agravará com a já anunciada la Niña. Ela trará as secas, as queimadas e a renovação do ecocídio. Não podemos esquecer que tudo isso, que responde a uma mesma raiz , está ligado (deve ser creditado) aos mesmos responsáveis, servindo de base para o fortalecimento de nossas convicções e compromissos. Sem anistias.
Como em sociedade nada se define senão pela política ou pelas armas (que estão com eles), devemos agir conscientes de que nosso futuro está amarrado ao que vai ocorrer nesta e nas próximas eleições. Ali se definirá quem somos, com quem pretendemos estar, para onde vamos e a que tipo de gente pretendemos valorizar nesta que há de ser, eternamente, a boa luta.
Encerro com o lema de Leonel Radde: todos podem colaborar, ninguém faz nada sozinho.
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Referências Bibliográficas
1 LESSA, Sérgio. Resenha de:LOUREIRO, Isabel. (Org.)Socialismo ou barbárie – Rosa Luxemburgo. São Paulo, Instituto Rosa LuxemburgStiftung, 2008, 128p. Crítica Marxista, São Paulo, Ed. Unesp, n.29, 2009, p.185-188. https://www.ifch.unicamp.br/criticamarxista/arquivos_biblioteca/resenha2015_06_04_10_34_0243.pdf
3 https://twitter.com/matheuspggomes/status/1785833032760312236