Os direitos indígenas em disputa e os seus possíveis desdobramentos depois de um ano de governo Lula
Luis Ventura, Secretário Executivo CIMI – Conselho Indigenista Missionário, Rafael Modesto, Paloma Gomes e Nicolas Nascimento, assessores jurídicos do CIMI
O ano de 2023 se encerra com muitos elementos novos no cenário político-jurídico sobre os direitos dos povos indígenas. Como desdobramento de incidências e eventos políticos marcantes, associados a um panorama intenso de lutas na defesa do que previsto na Constituição Federal, especialmente nos artigos 231 e 232, alguns aspectos são necessários de serem abordados neste momento.
É de se destacar, mais uma vez, a atuação do Conselho Indigenista Missionário – CIMI na defesa dos direitos indígenas. Ainda de maior destaque, foi a presença indígena em Brasília em 2023 e de sua força ancestral e cosmológica. Mais uma vez as comunidades organizadas em delegações, o movimento indígena e as organizações de apoio mostraram que essa intervenção tem sido fator preponderante para a manutenção das garantias fundamentais que a Constituição assegura – especialmente o direito à demarcação das terras de ocupação tradicional.
O ano foi marcado pelo desdobramento de lutas iniciadas no passado, mas que o desfecho, que não se deu no corrente ano e pode não terminar tão cedo, teve um anunciado aumento de chances de se desatar num futuro próximo – a depender de vontade política.
Como elemento central para o desate, a Suprema Corte finalizou o julgamento do mérito do Recurso Extraordinário de nº 1.017.365 (Tema 1.031 da Repercussão Geral). A decisão da Corte foi pela inconstitucionalidade do marco temporal e pela garantia do direito à demarcação dos territórios indígenas.
Por outro lado, o Congresso Nacional fez aprovar o PL 2903/23, que culminou na aprovação, com vetos, da Lei nº 14.701/23, que visava instituir a tese do marco temporal e um conjunto de outras maldades. A referida Lei é questionada pelo movimento indígena, organizações indigenistas e até mesmo por outros setores da sociedade. Inclusive, por organizações internacionais e países europeus.
Grande parte da Lei nº 14.701/23 foi vetada pelo chefe do poder executivo, por considera-la inconstitucional. Alguns aspectos procedimentais, em relação à demarcação, foram sancionados, mas com poucas ou quase nenhuma implicação prática. Mas a parte que regulava a demarcação e trazia um conceito de terras de ocupação tradicional com um vetor temporal, foi vetada, seguindo a orientação do Supremo Tribunal Federal – STF quanto à predominância do indigenato sobre qualquer outra tese restritiva de direitos.
Doravante, os vetos do Presidente da República ainda estão pendentes de análise pelo Congresso Nacional. Provável que o Congresso derrube os vetos e aí restaria à Suprema Corte, caso provocada, para, uma vez mais, avaliar a viabilidade jurídico-constitucional da Lei e da tese do marco temporal. Caso a Suprema Corte mantenha o veto e a inconstitucionalidade da tese ruralista, o Congresso teria ainda a possibilidade de aprovar o marco temporal por meio de uma Proposta de Emenda Constitucional – PEC, e o desate, por ainda mais uma vez, recairia sobre a Corte Constitucional.
Significa que, a depender da intenção dos ruralistas e suas bancadas no Congresso, a discussão sobre a tese do marco temporal ainda pode perdurar no tempo e obrigar o movimento indígena a muita resistência. Por outro lado, o STF, no julgamento do Tema 1.031, no qual afastou o marco temporal, permitiu ao setor, como meio de pacificação das tensões, o recebimento do valor da terra nua.
Mesmo com essa solução – que pode ser um problema orçamentário para a União, mas passível de superação com vontade política –, o setor ruralista não admite a demarcação das terras indígenas, pois agarrado a uma reação radical e ideologicamente desmedida de não aceitar que as terras sejam devolvidas aos seus verdadeiros e primeiros ocupantes, mesmo com o direito de receber pelo valo integral da área.
Um outro aspecto importante, foi a derrota da extrema-direita nas eleições de 2022. Somados a eleição do atual presidente e a inconstitucionalidade do marco temporal, os povos indígenas e seus aliados puderam se reposicionar para fazer enfrentamentos com mais conteúdo político e jurídico – dado que o governo do Bolsonaro era anti-indígena, pró-agronegócio e foi eleito com a promessa de não demarcação um milímetro de terra indígena.
Por ora, são dois poderes da república que compreendem pela inconstitucionalidade do marco temporal e pela garantia das demarcações, mesmo que para isso tenha que indenizar aqueles ocupantes que provem a boa-fé da ocupação, o justo título e que consigam comprovar que ocupavam as terras indígenas, sem existência de conflito, em 1988. Do outro lado está o poder legislativo, isolado na busca da implementação da tese ruralista já declarada inconstitucional pelo STF, dando mostras de que não deve arrefecer diante do cenário colocado pelo executivo e pelo judiciário.
O próximo período poderá ser ainda de muita resistência para os povos indígenas e aliados, visto o STF poderá analisar possíveis embargos de declaração no Tema 1.031 – o acórdão não foi publicado e ainda não há prazo para oposição de embargos. Por outro lado, em caso da derrubada do veto pelo Congresso, a Corte Constitucional, sem nenhuma dúvida, vai receber e julgar ação de inconstitucionalidade da Lei nº 14.701/23.
Tramita também no legislativo a Proposta de Emenda à Constituição – PEC 48/2023. Se ao final aprovada a PEC, a matéria pela terceira vez poderá ser levada ao STF para análise. Importante destacar que a Suprema Corte manteve posição firme contra o marco temporal e pela garantia dos direitos fundamentais dos povos indígenas, estes considerados, portanto, como verdadeiras cláusulas pétreas, impassíveis de modificação pelo constituinte reformador.
No âmbito do executivo, aos povos indígenas cabe exigir com celeridade a tramitação dos procedimentos administrativos de demarcação e demandar do governo e do congresso que possam planejar orçamento suficiente para a regularização dos territórios e devolver a posse das terras às suas comunidades.
No judiciário, além do enfrentamento que deve perdurar no STF, os Povos deverão promover a defesa nas ações possessórias que tramitam na primeira e segunda instância da justiça federal, como medida necessária para a manutenção da posse das suas terras, sob risco de violência extrema.
Por fim, importante destacar que a decisão do STF, ao garantir a continuidade das demarcações, criou um mecanismo perigoso às comunidades indígenas. Ao firmar que a Constituição não tem marco temporal e que as terras devem ser demarcadas, deu direito, por outro lado, de indenização prévia aos invasores de terras de ocupação tradicional. Ou seja, somente após a indenização a comunidade poderá tomar posse da área. Na ausência de condição orçamentária pela União, o que resta é o risco de grave conflito possessório, além da massiva judicialização desse conflito.
Isso porque, o não-indígena tem direito de retenção se não receber a indenização pela terra nua. Contudo, a Corte garante que essas áreas reivindicadas são originárias, criando uma espécie de sobreposição de direitos. Esse entendimento empregado pelo STF para a resolução da questão indígena tem o potencial de gerar enormes conflitos, já que ambos grupos estão legitimados à defesa da mesma posse.
O desdobramento seria o conflito pelas vias de fato e, também, a repetição da judicialização da disputa ocorrida nas décadas anteriores, sobrecarregando o judiciário com novas ações de natureza possessória – podendo desdobrar, ainda, em ações criminais por força da conflitualidade.
Para arrematar, consideramos que, diante do que se avizinha, dois desdobramentos são possíveis: 1) manutenção da decisão do STF e do veto do chefe do executivo e a demarcação das terras indígena, sendo indenizados aqueles que de direito para construir um ambiente de relativa diminuição das tensões no campo; e 2) insistência pela bancada ruralista na tese do marco temporal, a perpetuação dos conflitos possessórios localizados entre indígenas e não-indígenas e a proposição de novas ações judiciais, além da continuidade do tensionamento entre os poderes da república, criando enorme instabilidade político-jurídica.
Esperamos que nos próximos anos prevaleça o bom senso e a manutenção da integridade do texto constitucional, como proposto pelo STF e acordado pelo chefe do executivo – e vista com bons olhos no cenário internacional –, e seja adotada como a única solução viável. Contudo, o que se avizinha, pelo que se sabe da atual composição no Congresso Nacional, é mais tensão entre os poderes e uma possível tentativa de perpetuação da disputa possessória. Os prejuízos são dos povos indígenas, dos pequenos agricultores pobres e do meio ambiente.