Antes ou depois dos índios?
Por Cecilia Cavalcanti
Jornalista RedeD
Outro dia uma charge me chamou a atenção, entre tantas, sobre o Marco Temporal. De um lado de uma cerca, um indígena com o ano de 1500 e, do outro lado com o ano de 1988, um fazendeiro. Sem dúvida uma imagem que demonstra a síntese da polêmica da PL490, que dispõe sobre as demarcações de terras indígenas, votada na Câmara dos Deputados.
Então vamos tentar entender: o marco temporal das terras indígenas é uma tese jurídica construída a partir no julgamento do caso Raposa Serra do Sol, em Roraima, pelo STF, em 2009. A ação começa quando foi pedida a retirada de não-indígenas daquela área. Nela, o Supremo decidiu que o usufruto das terras tradicionalmente ocupadas pelos indígenas brasileiros deveria estar vinculado contando-se apenas as terras já demarcadas até 5 de outubro de 1988, data da promulgação da Constituição.
No entanto, durante o governo Michel Temer, a partir de parecer da Advocacia-Geral da União (AGU), entendeu-se o precedente de Raposa Serra do Sol como obrigatório para todos os processos de demarcação de terras indígenas. Aí começava uma das maiores disputas que se estende até hoje, que coloca os povos indígenas de um lado e os ruralistas e agricultores de outro. A tese volta ao STF mas, por causa da pandemia de COVID-19, o ministro relator do processo, Edson Fachin, suspende todos os processos sobre demarcações de terras indígenas.
Jair Bolsonaro ao assumir a presidência manifesta-se a favor do marco, dizendo que, caso o STF decida modificá-lo, seria “um duro golpe ao nosso agronegócio, com repercussões internas quase catastróficas, mas também lá para fora”. Uma declaração clara aos interesses específicos de grandes latifundiários e a uma economia de destruição, como foi constatado. Mesmo sem decisão definitiva, o governo de Bolsonaro fez vista grossa às invasões das terras demarcadas, além de áreas inteiras de reserva florestal.
Recentemente, o STF volta a votar sobre o Marco Temporal. O relator, Edson Fachin, foi contrário ao estabelecimento de um marco pois, ao invés de pacificar a questão, paralisou as demarcações e acirrou conflitos; declarou também que “dizer que Raposa Serra do Sol é um precedente para toda a questão indígena é inviabilizar as demais etnias indígenas“.
O segundo voto foi do ministro “apadrinhado de Bolsonaro”, Nunes Marques, que se mostrou favorável à tese. O julgamento foi suspenso no dia 15 de setembro de 2021, quando o ministro Alexandre de Moraes pediu vistas do processo.
Numa manobra política e levada a toque de caixa, o presidente da Câmara dos Deputados, Arthur Lira, coloca em votação o Marco Temporal em plenário, no dia 30 de maio, três meses após a abertura dos trabalhos na Casa. A tese do Marco Temporal (PL490) foi aprovada, restringindo a demarcação de terras indígenas àquelas já tradicionalmente ocupadas por esses povos em 5 de outubro de 1988, data da promulgação da nova Constituição federal. A tese está parada no Senado, onde vai tramitar como PL 2.903/2023.
Enquanto isso, várias etnias indígenas esperam por uma decisão, lembrando que são os verdadeiros guardiões da biodiversidade, como nos diz o cacique David Guarani, da Aldeia Jaraguá:
“O povo Guarani é um dos maiores do Brasil e fomos deixados de lado. Não tivemos terra demarcada antes da Constituição, mas estamos aqui desde sempre. Falo em nome das crianças, daquelas que continuarão as nossas tradições e cultura. Não dar o direito à terra aos povos originários é um atentado à Constituição. Vamos lutar até o fim”.